O Sopro da Natureza

 

Mark Henson painting

 

 

Quando a Natureza magnânima suspira,

Ouvimos os ventos

Que, silenciosos,

Despertam as vozes dos outros seres,

Soprando neles.

De toda fresta

Soam altas vozes. Já não ouvistes

O marulhar dos tons?

 

Lá está a floresta pendente

Na íngreme montanha:

Velhas árvores com buracos e rachaduras,

Como focinhos, goelas e orelhas,

Como orifícios, cálices,

Sulcos na madeira, buracos cheios d’água:

Ouve-se o mugir e o estrondo, assobios,

Gritos de comando, lamentações, zumbidos

Profundos, flautas plangentes.

Um chamado desperta o outro no diálogo.

Ventos suaves cantam timidamente,

E os fortes estrondam sem obstáculos.

E então o vento abranda. As aberturas

Deixam sair o último som.

Já não percebestes como então tudo treme e

Se apaga?

 

Yu respondeu: Compreendo:

A música terrestre canta por mil frestas.

A música humana é feita de flautas e de instrumentos.

Que proporciona a música celeste?

Mestre Ki respondeu:

Algo está soprando por mil frestas diferentes.

Alguma força está por trás de tudo isso e faz

Com que os sons esmoreçam.

Que força é esta?

 

(Chuang Tzu)

 

 

 

Tomas Merton. A Via de Chuang Tzu. 5ª Edição. Editora Vozes. Petrópolis, 1989.

O Tempo

 

Parte, e tu verás
Como as coisas que eram, não são mais
E o amor dos que te esperam
Parece ter ficado para trás
E tudo o que te deram
Se desfaz.

 

Parte, e tu verás
Como se quedam mudos os que ficam
Como se petrificam
Os adeuses que ficaram a te acenar no cais
E como momentos que passaram apenas
Parecem tempos imemoriais.

 

Parte, e tu verás
Como o que era real, resta impreciso
Como é preciso ir por onde vais
Com razão, sem razão, como é preciso
Que andes por onde estás.

 

Parte, e tu verás
Como insensivelmente esquecerás
Como a matéria de que é feito o tempo
Se esgarça, se dilui, se liquefaz
E qualquer novo sentimento
Te compraz

 

Repara como um novo sofrimento
Te dá paz
Repara como vem o esquecimento
E como o justificas
E como mentes insensivelmente
Porque és, porque estás

 

Ah, eterno limite do presente
Ah, corpo, cárcere, onde faz
O amor que parte e sente
Saudade, e tenta, mas
Para viver, subitamente, mente
Que já não sabe mais
Vida, o presente; morte, o ausente –
Parte, e tu verás. . .

 

 

Vinícius de Moraes in Jardim noturno

 

Foto do dia 29/09, da NASA, não é montagem.

Credit & Copyright da imagem: Chris Thomas.

Palavra Escrita ~ Espelho Mágico

 

 

 

 

 

São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.


Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.


Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.


Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?


(Eugénio de Andrade)



É mineral o papel
onde escrever
o verso; o verso
que é possível não fazer.

 

São minerais
as flores e as plantas,
as frutas, os bichos
quando em estado de palavra.

 

É mineral
a linha do horizonte,
nossos nomes, essas coisas
feitas de palavras.

 

É mineral, por fim,
qualquer livro:
que é mineral a palavra
escrita, a fria natureza

 

da palavra escrita.

 

 

 
(João Cabral de Melo Neto)

Das minhas traduções…

Como árvores

.

Quem haveria de dizer

que os poemas dos outros

seriam meus

.

sim pois existem homens que nunca fui

no entanto queria ter sido

senão por uma vida

ao menos por um tempo

ou um instante

.

depois existem homens que fui

e já não sou mais e nem mais poderia

e isso nem sempre indica superação

às vezes é somente tristeza

.

existem desejos profundos e inéditos

que projeto como coordenadas

existem fantasias que me prometi

e desgraçadamente não pude cumprir

e outras que sem prometer cumpri

.

existem rostos sem máscaras

que iluminam a minha imaginação

rostos que não vejo mas que me seguem

vigiando-me

nas cartas que lhes escrevo

.

existem fantasmas de carne

e outros de ossos

também existem os de fogo e os de coração

ou seriam corpos em pena nas almas em júbilo

que vi ou toquei ou simplesmente pus

a secar

a viver

a gozar

a morrer

.

há muito que tenho observado

eu também vi e ouvi uma pomba

que foi de outros dilúvios

eu também perdi um paraíso

que foi de outras inocências

eu também embalei um sonho

que foi de outros amores

.

assim pois

desses misteriosos confins da existência

outros me ampararam como árvores

com ninhos ou sem ninhos

pouco importa

não me deram anseios mas frutos

esses outros estão

aqui

seus poemas

são mentiras lavradas

são verdades piedosas

estão aqui

rondando-me

julgando-me

com estas pobres palavras que eu lhes estou dando

.

homens que veem terra e céu

e através de névoas

ou sem lunetas

também me veem

com a miserável vista que sigo dando

são outros que vivem fora dos meus domínios

mas claro

também eu

estou entre eles

.

às vezes têm o que nunca tive

às vezes amam o que quis amar

às vezes odeiam o que estou odiando

e de repente me parecem distantes

tão remotos

que me dão vertigem e melancolia

em os ver minados de uma dor sem pranto

.

outras vezes no entanto

eu os pressinto tão perto

que vejo por seus olhos

e toco por suas mãos

e quando odeiam me anima o seu rancor

e quando amam me sustenta a sua felicidade

.

quem poderia dizer

que meus poemas

haveriam de ser

de outros.

.

Mario Benedetti

.

 


.

Como árboles

.


Quién hubiera dicho

que estos poemas de otros

iban a ser míos

.

después de todo hay hombres que no fui

y sin embargo quise ser

sino por una vida

al menos por un rato

o por un parpadeo

.

en cambio hay hombres que fui

y ya no soy ni puedo ser

y esto no siempre es un avance

a veces es una tristeza

.

hay deseos profundos y nonatos

que prolongué como coordenadas

hay fantasías que me prometí

y desgraciadamente no he cumplido

y otras que me cumplí sin prometérmelas

.

hay rostros de verdad

que alumbraron mis fábulas

rostros que no vi más pero siguieron

vigilándome desde

la letra en que los puse

.

hay fantasmas de carne

otros de hueso

también los hay de lumbre y corazón

o sea cuerpos en pena almas en júbilo

que vi o toqué o simplemente puse

a secar

a vivir

a gozar

a morirse

.

pero además está lo que advertí de lejos

yo también escuché una paloma

que era de otros diluvios

yo también destrocé un paraíso

que era de otras infancias

yo también gemí un sueño

que era de otros amores

.

así pues

desde este misterioso confín de la existencia

los otros me ampararon como árboles

con nidos o sin nidos

poco importa

no me dieron envidia sino frutos

esos otros están

aquí

sus poemas

son mentiras de a puño

son verdades piadosas

están aquí

rodeándome

juzgándome

con las pobres palabras que les di

.

hombres que miran tierra y cielo

y a través de la niebla

o sin sus anteojos

también a mí me miran

con la pobre mirada que les di

son otros que están fuera de mi reino

claro

pero además

estoy en ellos

.

a veces tienen lo que nunca tuve

a veces aman lo que quise amar

a veces odian lo que estoy odiando

de pronto me parecen lejanos

tan remotos

que me dan vértigo y melancolía

y los veo minados por un duelo sin llanto

.

y otras veces en cambio

los presiento tan cerca

que miro por sus ojos

y toco por sus manos

y cuando odian me agrego a su rencor

y cuando aman me arrimo a su alegría

.

quién hubiera dicho

que estos poemas míos

iban a ser

de otros.

.

Mario Benedetti

.

 

Arte fotos Waclaw Wantuch

em cima & embaixo

 

“Treme a folha no galho mais alto” – escrevo. Paro e sorvo, de olhos fechados, o cheiro bom da terra, do capim chovido. . . Parece que quer vir um poema. . . Abro os olhos e fico olhando, interrogativamente, a linha que escrevi no alto da página. Depois de longo instante, acrescento-lhe três pontinhos. Assim não ficará tão só enquanto aguarda as companheiras. O vento fareja-me a face como um cachorro. Eu farejo o poema. Ah, todo o mundo sabe que a poesia está em toda parte, mas agora cabe toda ela na folha que treme.

(…)

 

 

 

Mario Quintana

“Pálpebras Descidas”

 

Demogorgon

Álvaro de Campos

 

Na rua cheia de sol vago há casas paradas e gente que anda.
Uma tristeza cheia de pavor esfria-me.
Pressinto um acontecimento do lado de lá das frontarias e dos movimentos.

Não, não, isso não!
Tudo menos saber o que é o Mistério!
Superfície do Universo, ó Pálpebras Descidas,
Não vos ergais nunca!
O olhar da Verdade Final não deve poder suportar-se!

Deixai-me viver sem saber nada, e morrer sem ir saber nada!
A razão de haver ser, a razão de haver seres, de haver tudo,
Deve trazer uma loucura maior que os espaços
Entre as almas e entre as estrelas.

Não, não, a verdade não! Deixai-me estas casas e esta gente;
Assim mesmo, sem mais nada, estas casas e esta gente…
Que bafo horrível e frio me toca em olhos fechados?
Não os quero abrir de viver! ó Verdade, esquece-te de mim!

 

“O grande mundo está crescendo todos os dias”

.

Não temos nada além do amor.
Não temos antes, princípio, nem fim.
A alma grita e geme dentro de nós:
– Louco, é assim o amor.
Colhe-me, colhe-me, colhe-me!

Rumi

(…)

Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.

Manuel Bandeira

Mundo grande

Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso frequento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.

Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.

Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem… sem que ele estale.

Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma, não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! Vai inundando tudo…
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos – voltarão?

Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)

Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.

Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.

Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.

Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
– Ó vida futura! Nós te criaremos.

Carlos Drummond de Andrade,

in Sentimento do Mundo.